Um amor feliz[1] é, entre outras coisas, o resultado e testemunho de uma estada, durante a década de 1960, de Hubert Fichte e de Leonore Mau, em Portugal. Entre outras coisas, pois o livro é muito mais do que uma narrativa de viagem ou uma etnografia dos cinzentos anos de 1960 em Portugal, então ainda sob o jugo da ditadura, vivida cada vez mais discreta, mas não menos sombriamente – a violência dos silêncios, dos ‘brandos costumes’, reforçada pela violência da guerra colonial, não só no então ultramar, mas também na metrópole.

Dizer que Um amor feliz é muito mais do que literatura de viagens não equivale a tentar menorizar este tipo de literatura, que é sempre muito mais do que mera descrição objetiva de percursos, evocação subjetiva de experiências relativamente exóticas ou descoberta de um eu interior, consoante os géneros ou as épocas. Contém sempre, implícita ou explicitamente, uma reflexão sobre os processos de perceção e construção da realidade entrevista.

No caso de Hubert Fichte, a questão adquire contornos ainda mais complexos, dada a teia de relações, a montagem de textos, experiências e lugares, as múltiplas referências que o texto estabelece com outras obras e tempos, o que não invalida a importância do lugar em que a narrativa predominantemente se centra. Ou seja, existem duas leituras possíveis de Fichte: uma que privilegia os contextos objetivos dos lugares descritos; outra que atende aos processos subjetivos de perceção e construção dessa narrativa que a sua escrita – contida, quase ascética, parca em adjetivos e efusões sentimentais, na descrição do excesso da viagem e das sensações experimentadas e procuradas – não trai, mas que uma interpretação mais densa permite entrever.

São estas duas perspetivas que a seguir aqui se ensaiarão, sempre entrelaçadas e que podem ser lidas em paralelo: uma decorrente de uma leitura menos avisada, mas que permite decifrar questões que a segunda não dá a ver; uma outra que mitiga e expande a primeira. Ao que se acrescenta ainda um outro ponto de vista, também ele subjetivo, introduzindo nesse amor feliz um terceiro elemento – o do objeto observado, de uma ‘indígena’, fascinada e incomodada, vingando-se do antropólogo, lendo o seu texto por cima do seu ombro[2], para interpretar, por sua vez, as descrições da vida portuguesa sob o Estado Novo, mas também tentar desvendar a subjetividade por detrás daquilo que é descrito e narrado.

Os observadores não se importariam, decerto, com este ménage à trois.

Comecemos por algumas informações sobre o contexto em que a experiência é relatada e, depois, a narrativa escrita, processos que nunca são simultâneos, havendo, neste caso, um hiato de cerca de vinte anos, dado que o processo de escrita foi concluído já em 1984, na Ilha de Grenada, e o livro publicado em 1988, ou seja, postumamente, dois anos depois da morte prematura de Fichte.

Hubert Fichte e Leonore Mau viveram em Portugal, sobretudo em Sesimbra, durante alguns meses no ano de 1964. Tratou-se da sua primeira estada prolongada em conjunto no estrangeiro.

Portugal seria decisivo a vários títulos. Por um lado, seria aí que Fichte começaria a esboçar Die Palette (1968), o seu grande best-seller, que lhe asseguraria os meios para iniciar um périplo pelo mundo que, começando no Brasil, o levaria a outros lugares ligados às culturas da diáspora africana, do Atlântico negro – das Américas ao continente africano –, fascinado que ficou pelas religiões afro-americanas, como forma alternativa de acesso à realidade, que estudou, contudo, com distância crítica.

Portugal seria, também, um momento central na forma de se relacionar com a sua sexualidade, ‘nem carne, nem peixe,’ como escreve acerca da carne (de porco) à alentejana, que classifica de bissexual, numa sequência em que, entre outras coisas, o narrador descreve as variadas e estranhas iguarias que lhes são servidas, desde a sopa à alentejana, com os seus coentros e bolhas de azeite, animados pelos fiapos de clara do ovo, às lulas recheadas que, a Irma / Leonore Mau, não a Jäcki / Hubert Fichte, parecem pneus ou, ainda, os diferentes vinhos verdes, o branco e o tinto, entre os quais hesitam, optando finalmente por ambos. As iguarias, banais aos olhos do leitor português, transformam-se num quotidiano estranho e exótico, à semelhança da litania de nomes de peixes, na lota de Sesimbra, que, retomados no foto-filme Os peixes e a lota (1968), são mais experiência sonora do que tentativa de classificação do mundo.

O mesmo sucederá, por exemplo, com as barracas pontiagudas da praia, para não falar da descrição da desaparecida pastelaria Ferrari, no Chiado, com a sua burguesia abastada, mas provinciana, das lojas de roupa interior junto aos Restauradores e do estilo neogótico da Estação do Rossio. Atmosfera que os portugueses mais jovens terão dificuldade em reconhecer, mas ainda, esporádica, discretamente presente nesses mesmos lugares, agora domesticados em espaço de lazer para benefício de hordas de turistas que os ‘indígenas’ tentam evitar.

Um amor feliz pode ser encarado como um título enganador, mas não o é totalmente. Evocando a cumplicidade entre Jäcki e a sua companheira Irma, as suas complementaridade e tensões – patentes nos diálogos em que esgrimem forças relativamente aos meios que utilizam para representar o que veem, e que muito nos dizem acerca, quer da relação entre literatura e imagem, quer da metodologia de escrita e poética de Fichte –, Um amor feliz é, a um tempo, um confronto com a identidade do narrador e com o modo como ela é afetada pelas paisagens geográficas e, sobretudo, humanas que o rodeiam.

Busca de si, como toda a viagem acaba também sempre por ser, o texto fornece-nos um retrato inesperado e pouco usual do país dos ‘brandos costumes’, através de descrições insólitas de espaços interditos, que não só nos dão a ver a homossexualidade censurada, e a hipocrisia e a violência por detrás dessa censura, mas também são pretexto para evocar – mais do que descrever, ou, sequer, explicar – as desigualdades e injustiças económicas e de género que a guerra colonial prolonga e reforça. Isto sem ignorar a sua contestação esporádica e receosa, sempre através da transcrição e montagem cuidadosa de conversas ocorridas em circunstâncias pouco ortodoxas, entremeadas de evocações precisas de lugares, sons, cores e cheiros, como sucede na descrição surpreendente de lojas, restaurantes ou de lugares de encontros proibidos em Lisboa ou Sesimbra.

Há ainda caracterizações a raiar a caricatura da burguesia local, colocada em contraste com pescadores e operários, muitos deles com os traços de navegadores e príncipes ou poetas renascentistas. Caraterizações que, por sua vez, também podem servir de pretexto para se reproduzir relatos de torturas da PIDE, denunciar prisões políticas, ao mesmo tempo que se fazem alusões ao tempo perdido de Proust, às suas personagens, ou aos Lusíadas de Camões e ao Felix Krull de Thomas Mann, realidades e ficções interrompidas por menções à escrita de Die Palette e ao processo doloroso de criação. A oficina do escritor é assim tornada visível, por entre memórias da guerra, período difícil, sobretudo, para este filho de pai judeu e de mãe ‘ariana’, evocações de tempos passados na Provença, incluindo tricas do meio literário alemão.

Para regressar às duas perspetivas que se começou por evocar: se, por um lado, o leitor, sobretudo o ‘indígena’ mais familiarizado com a realidade descrita, se vê, subitamente, confrontado não só com uma imagem de um Portugal agora desfamiliarizado por esse olhar de fora – mas, por isso mesmo, suscetível de registar não só o politicamente censurado, mas também um mundo subterrâneo –, o texto oferece ainda, lido de uma perspetiva mais conhecedora da obra do autor, pistas fundamentais para um método de escrita e de etnografia – que Fichte designou de etnopoética –, em paralelo com experiências já antes ensaiadas na antropologia, e que viriam a ser teorizadas, pouco depois, na academia, nomeadamente, através da reflexão sobre as relações entre antropologia e literatura.

 Um amor feliz é, assim, várias coisas ao mesmo tempo. Evocação retrospetiva de um tempo feliz, de experimentação de uma relação, da sexualidade e da escrita; etnografia atenta e sensível de um país, lendo densamente a sua superfície, desde a gastronomia, à literatura, aos lugares e políticas interditos ou censurados, montando os resultados de conversas fortuitas em encontros mais ou menos clandestinos com as suas experiências quotidianas, que revelam ser decisivos, seja para o processo de escrita, seja para a aprendizagem etnográfica, e que tanto melhor permitem pôr a nu a hipocrisia cinzenta dos tempos de Salazar, face ao colonialismo, à repressão política ou à desigualdade económica.

Mas é através do entrelaçar dessas duas perspetivas ou planos que Um amor feliz adquire a densidade poética e etnográfica e, também, política, que caracteriza este retrato de um paraíso turístico – mas também de inferno, então ainda por descobrir –, país africano na Europa, esmagado pelo sol e pela dureza de um quotidiano que só as elites pareciam querer ignorar.

E, pese embora a sobranceria que esta ‘indígena’ tem de experimentar perante o seu antropólogo, que, apesar da sua vulnerabilidade explícita, corre o risco de pretender ocupar um ponto de vista privilegiado sobre os lugares visitados e os humanos observados, a verdade é que esta narrativa de viagem, que Um amor feliz também é, revela a capacidade de nos fornecer um retrato tanto mais nítido, quanto mais dependente das obsessões subjetivas do observador / narrador.

Isto deve-se, sobretudo, à linguagem inesperada, em staccato, montagem que muito deve ao diálogo com a fotografia, e que, através do depurar de ornamentos, a torna tanto mais eloquente, permitindo que as convenções dos géneros literários sejam postas a nu e, assim, questionadas, daí resultando, paradoxalmente, representações tanto mais perturbadoramente verosímeis.