Escrever como se fala.
Uma espécie de diário – dez anos depois das datas
Uma entrevista comigo mesmo.
Com destreza, o espontâneo
Mas nada de arte.
Superficial.
Nada de ambientes psicológicos.
Nada de equivalências.

Hubert Fichte, Hotel Garni

Ora vamos lá fazer uma exposição com artistas portugueses, depois de terem lido Um amor feliz, traduzido para português no âmbito de um projeto global da Haus der Kulturen der Welt de Berlim e do Goethe-Institut! E depois, todos faremos arte!

Comentário: desculpem lá, mas ilustrar um livro não é o que nos vai na alma.

Um amigo do curador da exposição foi, em tempos, ourives, e, depois de ter corrido o boato de que conseguia transformar, quase por alquimia, ouro antigo em joias novas, veio um grupo numeroso de senhoras, com muitos dentes de ouro antigos e ideias brilhantes para louvar o artífice: “ De certeza que ainda podemos desenvolver as suas ideias maravilhosas.”

Foi durante uma estadia de vários meses em Sesimbra que Hubert Fichte e a sua compa- nheira, a fotógrafa Leonore Mau, iniciaram o projeto que os levaria a vários cantos do mundo. A vila piscatória, situada a uma hora a sul de Lisboa, era, então, ainda pitoresca; hoje, o pitoresco impõe-se, como é normal. A estadia ecoa em muitos escritos de Fichte. O livro Um amor feliz, concluído na ilha de Granada em 1984, ou a peça radiofónica de 1967, Caparica: visita a uma aldeia piscatória portuguesa, baseiam-se nesta primeira grande expedição de barco, a partir de Hamburgo, de Bremerhaven a Lisboa, sem atravessar quaisquer metrópoles europeias.

O projeto global lançado por Diedrich Diederichsen e Anselm Franke em torno da obra de Fichte inicia-se, no que diz respeito à parte portuguesa, em janeiro de 2015, com um encontro entre várias personalidades num hotel em Sesimbra, organizado pelo curador português. Um seminário de dois dias exatamente no Hotel Espadarte, onde, em tempos, Fichte e Mau mudaram a disposição dos móveis do seu quarto de meia pensão. Hoje, os quartos não permitem qualquer mudança; talvez, uma cadeira, uma poltrona, mas não a cama ou o armário.

A par de uma série de potenciais artistas, participam:

Diedrich Diederichsen e Anselm Franke, que tiveram a iniciativa da circulação internacional de Hubert Fichte: amor e etnologia, que lembra a rede de metro à escala global de Martin Kippenberger – próxima paragem, Lumiar Cité.

Martin Bach, diretor de programação do Goethe-Institut de São Paulo, representa o Goethe-Institut.

Manuela Ribeiro Sanches, portuguesa, vinda do comparativismo e da literatura. De Lisboa, fala fluentemente alemão e partilha a empatia por Fichte, mas, como portuguesa, não quer ser o inseto sob o microscópio – Manthia Diawara, em tempos, disse que os africanos não gostam de antropólogos.

Dois artistas estão entretidos com o seu currículo profissional. Há emails que aguardam resposta, enquanto na sala de conferências, com vista sobre o mar, Franke e Diederichsen traduzem para inglês – improvisadamente – alguns passos do livro de Fichte sobre Sesimbra. Discute-se muito e, no fim, fica-se perplexo como os artistas sob a cúpula da tenda de circo de Alexander Kluge. Mas ainda há tempo.

2017. Lista dos artistas, por ordem alfabética, há muito contactados pelas instituições colaboradoras – incluindo o espaço Lumiar Cité –, pronta a ser publicada no jornal online, três semanas antes da inauguração:

Gabriel Barbi, nascido no Brasil, desde algum tempo a viver em Lisboa, aparece em Sesimbra com as traduções de Fichte disponíveis no Brasil: Hotel Garni / Hotel Garni; Waisenhaus / Orfanato; Pubertät / Puberdade.

Hubert Fichte, apropriado.

Ramiro Guerreiro leu a versão portuguesa de Um amor feliz e está radiante. Tal como Fichte, ele é um admirador de Proust. Uma afinidade essencial sentida e uma sensibilidade consciente – significa isto identificar-se?

Ana Jotta, a pequena grande dama da cena artística portuguesa. Depois de ter lido
 Um amor feliz, a nova aquisição para o grupo, com idade suficiente para ter vivenciado os lugares descritos por Fichte – quase todos, alguns só conhecia de ouvir falar. Fascinada, concluiu, depois da leitura, a sua peça numa semana, obsessivamente, sem hesitações, discussões ou dúvidas. Acostumada a sentir-se frustrada com a cena artística local, os pensamentos e descrições acerca de Portugal, num determinado momento, por um escritor até hoje desconhecido em Portugal, surgem-lhe como um balão de oxigénio para coisas mais importantes.

Euridice Kala, de Moçambique – não uma portuguesa –, nome grego e apelido sânscrito, fala português, entre outras línguas, e observa com algum espanto – de uma distância segura – a linguagem que o tradutor José Maria Vieira Mendes inventou como equivalente português para o estilo direto de Fichte. Reza o cliché que os portugueses não são diretos. Durante as discussões, ocorrem a Kala, aquários a preto e branco. O corretor de português – o do novo acordo ortográfico – acusa erro no nome e no apelido da artista.

Simon Thompson, não-português. Sem interesse por banalidades acerca de origens, leu em Bruxelas algumas traduções para inglês de Fichte. O nosso livro só existe em alemão e em português.

Sensibilidades: o contrato, redigido inicialmente em alemão, para o desenvolvimento da estação portuguesa de Hubert Fichte: amor e etnologia, Lumiar Cité, é traduzido para inglês. As penalizações e exigências parecem, de repente, menos assustadoras. A cláusula do contrato, segundo a qual o curador terá de apresentar, a pedido das instituições envolvidas, textos dos artistas participantes, é retirada a pedido do curador.

Relatório: quatro encontros, ou no jargão da especialidade residências, umas vezes com todos, outras com alguns dos artistas na sala de seminários da Maumaus, Programa Independente de Estudos, no centro de Lisboa. Analisam-se e estudam-se: W. H. Auden, Raymond Briggs, Leigh Bowery, David Bowie, Michael Buthe, Michael Clark – bailarinos, Diedrich Diederichsen
e a sua palestra sobre Fichte no Goethe-Institut de Lisboa, Lukas Duwenhögger e o seu rejeitado monumento aos gays em Berlim, Harun Farocki, o “indiano curvo, com o seu Wittgenstein” no bolso [1], Hubert Fichte e a sua peça radiofónica Caparica: visita a uma aldeia piscatória portuguesa. Um caos trilingue na sala de seminários: a peça em alemão, a tradução para português, como texto no filme, e tudo traduzido improvisadamente para inglês; Jean Genet que, ao que consta, se masturbava entre os arbustos enquanto os alemães ocupavam a França, James Joyce – peduncle, Georgia O ́Keeffe – flores e maçãs, Richard Lindner – jukeboxes, Leonore Mau no filme de Nathalie David, Thomas Mann, Rafael Bordalo Pinheiro, Beatrix Potter, Andrei Tarkovsky, Cliffy Richard, Paul Thek, Wings (post-Mersey), Paul Wunderlich e a shunga japonesa e esgrafitos e capas Gallimard e cartazes de touradas à portuguesa no Turcifal. Excursões: barracas de venda na estrada Lisboa-Sesimbra para analisar modelos de animais, 1: 1 de fibra de vidro pintada; os porcos e os carneiros suscitam, em particular, a curiosidade do grupo. Hospital dos Capuchos, o antigo convento capuchinho no centro de Lisboa, com a sua vasta coleção de moldes de cera de tumores, alterações cutâneas e abcessos de doenças sexualmente transmissíveis, fabricados, nas décadas de 1930 e 1940 a partir de moldes de gesso pelos respetivos doentes, entre eles, muitas prostitutas. Consta que o artista era um exilado de Viena. A cor da pele dos doentes foi reproduzida através da introdução de pigmento na cera, os artistas da Faculdade de Belas-Artes de Lisboa estavam envolvidos e os pintores e decoradores da fábrica de porcelana da Vista Alegre fizeram reviver as intumescências através de pormenores filigrânicos. Há que acrescentar visitas a entradas de prédios muito altos dos anos de 1960 (iluminação e enfeites). Um colecionador belga de jukeboxes em Vila do Rei, duas horas a norte de Lisboa – à chegada e à partida há que fazer desvios devido aos incêndios florestais. Ponto de encontro: um diner americano no meio da aldeia, gerido pelo colecionador, com o nome Fifty-fifty – comemos hambúrgueres e pensámos em Hans Henny Jahn e no problema da urina de Fichte[2]. Em Lisboa, visita à construtora J. C. Sampaio Lda. – a uma oficina anexa para trabalho em metais e pintura do fornecedor e produtor de estruturas para exposições em todos os grandes museus de Lisboa. Segue-se, ainda, a visita a várias firmas de publicidade na margem sul. Refeições e combustível incluídos no orçamento.

Resultado dos debates: Fifty-fifty. Não se deixar apanhar em flagrante a fazer arte. Colagem e descolagem. O placard na casa de Fichte na Elbchaussee, em Hamburgo, no catálogo da exposição Fichte-Mau no Hamburger Deichtorhallen. A exposição como roman fleuve, com sistemas de referências crípticas. Conceito de jogo. Artistas de confeção. Fazer sentir as correla- ções, sem as demonstrar. Caricatura. Não a caricatura de algo, mas a caricatura em si. Não uma caricatura, mas caricatura – aboutness como problema da arte – not interested in Death or Life but in existence. A existência de Fichte independentemente da sua morte; onde estiver bem, está vivo. We will not show a show showing Fichte, the show shows itself for eventually to discover Fichte in that through and about aboutness. Fria e clinicamente. Os ambientes de caricaturas
e de exposições, nada de Buthe. O som de uma exposição. Fichte é o que escreve, através de pormenores banais, com interrupções explosivas. A industrialização da aboutness na atual arte da confeção profissional – a arte como trompe-l’œil do seu próprio fracasso: Trompe-l’oeil. A arte tem de ser crítica, tem de ser criativa, tem de ser sobre algo – ou about a non aboutness ou nothing to say, say it more, say it louder, manter-se fiel à desorientação própria I can’t live only on good meals, I need filths. No safe haven for Art. Fichte thinks socially and formally about life. Making a move for eventually discovering Fichte in it; we might discover Fichte in the aboutness or non aboutness about Fichte… We have to protect ourselves on the level of the exhibition as well as in relation to Fichte. Beyond the status of conception, a joke, moving into a formal stage. Oh, you make a lovely painting, no; you drew him, no; is this your take on him, no, it is someone else saying something about him; it feels like painting in a mirror for creating a distance through which we can shake hands (com Fichte?). Risco de o texto introdutório à entrada da exposição ser melhor que a exposição. Super dry! Ou, parafraseando Fichte, a exposição como uma minhoca de gelatina, a surgir ocasionalmente com as impressões cada vez mais débeis do mundo exterior, no limite do ângulo de visão, e a girar em torno de si mesma com os movimentos do globo ocular.